JULIO CÉSAR DE LIMA PRATES
Sobre estas e outras questões o Sputnik França falou com Philippe Moreau-Defarges, antigo diplomata e especialista em relações internacionais, que analisou em exclusivo o novo cenário de equilíbrio de forças que está tomando forma.
Fonte – Sputnik
EUA confrontam China
Em 3 de maio, o secretário de Estado Mike Pompeo acusou o Instituto de Virologia de Wuhan de disseminação do coronavírus, tendo Donald Trump ameaçado a China com taxas aduaneiras punitivas.
A diplomacia chinesa não se tem contido, refutando as acusações contra seu país e contra-atacando.
Um dos pontos principais das acusações norte-americanas à China incide na alegada subserviência da Organização Mundial da Saúde (OMS) a Pequim, que levou mesmo a administração Trump a suspender seu financiamento a esta instituição da ONU.
Será esta suposta influência chinesa sobre a OMS o símbolo de uma redefinição da ordem internacional que tem prevalecido desde 1945?
Criados após a Segunda Guerra Mundial, a ONU e seu Conselho de Segurança (CS) ainda estariam adaptados às realidades do século XXI? Entre o relativo isolacionismo norte-americano, a ascensão da China e uma Europa mais enfraquecida do que nunca, estaria à vista o fim da supremacia ocidental?
- 2020, ano do fim da hegemonia ocidental?
Para Philippe Moreau-Defarges, a resposta é inequívoca:
“Sim, não há dúvida que [a pandemia] será um golpe muito duro para a supremacia ocidental”.
Para o especialista, os EUA optaram por praticar “uma política de contenção e retirada”, que deixou o campo aberto a outras potências, particularmente às asiáticas, permitindo que elas venham um dia a assumir as rédeas da influência mundial.
Moreau-Defarges não tem dúvidas que a pandemia originará uma “profunda transformação do sistema econômico e geopolítico mundial”.
Seria o ano de 2020 comparável ao de 1992, que transformou os EUA em uma “hiperpotência” na sequência da dissolução da URSS em 1991?
Já quando entrevistado em 6 de fevereiro pela Sputnik França, Philippe Moreau-Defarges previu que, face à rivalidade sino-americana, seria inevitável a “Armadilha de Tucídides” – a dinâmica perigosa que ocorre quando um poder em ascensão ameaça a posição de um outro já estabelecido.
“Temos uma luta de braço entre a China – que está emergindo e começando a assustar – e os Estados Unidos, que têm medo de perder sua liderança”, explicou então.
Para o especialista, a eleição de novembro de 2024 – que provavelmente oporá Donald Trump e Joe Biden – não mudará fundamentalmente a situação. Poderia a eventual eleição de Biden reaproximar norte-americanos e europeus e levar os EUA a estabelecerem novas relações com a China.
Moreau-Defarges crê que tal fato teria importância meramente marginal, em um cenário de mudança muito mais profunda e estrutural, em virtude da globalização do modelo ocidental:
“Os não-ocidentais apropriaram-se do modelo ocidental, não para imitá-lo passivamente ou para se submeterem a ele, mas, ao contrário, para se apropriarem dele e colocá-lo ao seu serviço. Vejam a China, que ainda é comunista e, ao mesmo tempo, capitalista”.
Hegemonia chinesa não está garantida
Embora muitos estudiosos concordem que possamos estar perante o declínio da supremacia ocidental, nem todos opinam que isso possa levar a uma hegemonia chinesa. Philippe Moreau-Defarges é um deles. E avança com duas razões:
A primeira, por a China ser “um país ainda pobre, com massas pouco integradas mas com problemas comuns aos de países ricos, com uma população envelhecida”, e com uma renda per capita inferior por exemplo quatro vezes à francesa.
Um segundo fator a ter em conta, segundo o especialista, é que Pequim não só enfrentaria a resistência dos EUA e da Europa, mas também de outros países asiáticos: “Vietnã e Índia não estão nada prontos para aceitar a hegemonia chinesa”.
Se esta supremacia ocidental for realmente desafiada, que futuro poderemos antever para a comunidade internacional e o multilateralismo?
O ex-diplomata salienta a grande contradição existente nas instituições internacionais, um sistema que pressupunha Estados soberanos “concordando em se submeter a regras e instituições supranacionais”, e equacionando inclusive a possibilidade de “federalismo ou governança global”.
Ora essa perspectiva é agora refutada pelos EUA e por outros países, recusando qualquer delegação de soberania.
Papel da ONU
Até 1991, a ordem internacional era regida pelo equilíbrio do terror entre os dois blocos e não pelas Nações Unidas. Muitos previam e ansiavam então por um papel mais ativo da ONU nas relações internacionais.
© AP PHOTO / SALVATORE DI NOLFIVisão geral durante abertura de sessão comemorativa do Conselho de Direitos Humanos da ONU comemorando o 60º aniversário de adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em Genebra, Suiça, em 12 de dezembro de 2008.
Mas seu histórico de quase trinta anos deixa muito a desejar, entre a impotência crônica para resolver conflitos e bloqueios, causados por vetos sucessivos no Conselho de Segurança.
“Ou as grandes potências acabam com essas instituições para defesa de seus próprios interesses, ou […] aceitam a lógica dessas instituições”, afirmou o antigo diplomata.
Conselho de Segurança
Ainda que possamos imaginar que a China e os Estados Unidos se entendam, diz o ex-diplomata, não se sabe que papel o Conselho de Segurança poderia desempenhar, pois, apesar de manter sua utilidade, levanta problemas de legitimidade.
Com seu sistema definido no final da II Guerra Mundial, o direito de assento permanente de alguns países em declínio como a França e o Reino Unido, gera conflito com as ambições de países emergentes, como a Índia, México ou Brasil, refere o especialista.
“Para que essa transformação do CS seja possível, duas condições devem ser satisfeitas. A primeira, que os EUA, a Rússia e a China concordem em afastar as duas velhas potências europeias. A segunda condição é que os países do Sul, todos aqueles que aspiram a fazer parte do CS, se ponham de acordo”, opinou Moreau-Defarges.
Tal hipótese permanece altamente improvável, dada a complexidade de tal mudança radical, que exigiria uma terceira condição: que Paris e Londres aprovassem tal proposta, não exercendo seu direito de veto no CS.
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