As três vertentes epistemológicas do Direito

Sharing is caring!

*Júlio Prates

Não gosto de iniciar meus artigos com definições conceituais, mas hoje vou abrir uma exceção, especialmente para que as pessoas saibam claramente o que é EPISTEMOLOGIA e vou usar a definição de Japiassu, que é bem sintética e clara para o emprego jornalístico: “Essencialmente, a epistemologia é o estudo crítico dos princípios, das hipóteses e dos resultados das diversas ciências. Semelhante estudo tem por objetivo determinar a origem lógica (não psicológica) das ciências, seu valor e seu alcance objetivos” (Hilton Ferreira Japiassu, 1991, p. 25).

Os anos passam, as regras sociais mudam, tudo muda, nada é estático. Poucos sabem compreender a essência da Dialética, poucos mesmo, pois desde que eu comecei a ler e estudar Princípios Elementares de Filosofia, aos 16 anos, tratei de entendê-la como Método e valorizei tanto porque era o Método de Karl Marx. Quase 50 anos se passaram e eu continuo estudando a Dialética, embora impressionado com as distorções e os modismos. Surgiram até supostos sabichões que tentaram criar a trialética, uma invencionice, uma bobagem. E isso que eram professores universitários.

Tenho 4 amigos que são doutorados em filosofia e gozo deles prestígio e reconhecimento, não são desses canastrões que andam arrotando pelos cotovelos. São amizades sólidas e resistiram as décadas, aliás, meu abraço cordial ao médico MARCO ANTÔNIO OLIVEIRA AZEVEDO, médico, Mestre e Doutor em filosofia, meu amigo há 34 anos, um grande sábio e desfrutei tanto a amizade do MARCO que quando ele mudou-se da Sofia Veloso, na cidade baixa, deixou-me um apartamento, em seu nome, eis que eu morava no Bairro Lindóia, e era muito longe do Centro; um raro ser humano, tenho muito estima pelo Marco.

Mas existem direitos que não são reconhecidos pelo Estado, mas nem por isso deixam de ser direitos. Até onde as limitações jurígenas permitem navegações, vislumbra-se duas grandes vertentes epistemológicas no campo da ciência jurídica: o 1 – jusnaturalismo e o 2 – positivismo.Com clareza, identifica-se, ainda, a 3 – teoria dialética do direito, também uma vertente epistemológica, embora nem sempre clara, nem sempre visualizável, nem sempre assumida, porém, extremamente complexa.

As duas principais vertentes ideológicas no campo da ciência política – jusnaturalismo e positivismo – continuam sem conseguir dar conta de seus pressupostos epistemológicos ao nível do desenvolvimento das modernas teorias do conhecimento; seja o positivismo que reduz o direito à lei, não conseguindo resolver através de seu instrumental teórico problemas como o da legitimidade, o da pluralidade de ordenamentos e outros, acabando assim por reconhecer, implicitamente, como em Kelsen, por exemplo, o seu fundamento na dominação pura e crua do Estado.

Por outro lado, o jusnaturalismo eleva a padrões metafísicos e abstratos o problema da “justiça”, como se pudesse existir um padrão fixo e imutável dessa categoria, separando-a da realidade histórica e concreta, acaba assim referindo-se a fundamentos de ordem teológica, como se pudesse existir uma categoria de justiça divina e como se essa pudesse ser universal.

Em outras palavras, tanto o jusnaturalismo quanto o positivismo acabam por se referir, reciprocamente, em seus fundamentos últimos, a pressupostos metodológicos idênticos.

Assim o é na teoria pura de direito de Kelsen, que acaba se reduzindo a um fundamento de cunho jusnaturalista – que é a própria norma fundamental – vide pirâmide kelseniana. Por outro lado, o jusnaturalismo (que em tese é o contraponto ao positivismo) em última hipótese, para poder ter sentido prático, acaba por ser teoria que dá sustentação ou justifica esta ou aquela ordem jurídica dominante.

No conflito dessas duas grandes vertentes epistêmicas, foi que teóricos brasileiros, dentre eles, o saudoso Roberto Lyra Filho, Agostinho Ramalho Marques Neto, Marilena Chauí …  vislumbraram a grande brecha de construção de uma nova teoria jurídica, principalmente que rompesse com o maniqueísmo entre o jusnaturalismo e o positivismo.

Claro estava que era necessário romper com a idéia de que Direito só seria Direito se fosse legal, instado o raciocínio: acaso o processo de gênese (jurisginação) não é anterior à sua positivação e esta (a positivação) significando apenas o reconhecimento de direitos cuja gestação já ocorreu no processo histórico?

A vertente complexa a que me referi anteriormente é a dialética. Tanto Roberto Lyra Filho quanto Marilena Chauí, usaram a conceptualização marxista da expressão. Isso fica claro na leitura da obra de Lyra Filho: Karl meu amigo, diálogo com Marx sobre Direitoe também no livro O QUE É IDEOLOGIA, de Chauí.

Marx, ao construir os pressupostos de sua teoria política e, sobretudo econômica, foi buscar o conceito de Dialética em Hegel, eis que desprezando o idealismo que via nessa, apropriou-se somente daquela. Aí, acresceu o materialismo de Feuerbach, gestando, a partir de então, o materialismo dialético.

É claro que não vou fazer, nesse breve texto, uma divagação mais profunda acerca das bases dos pressupostos teóricos de Marx que, a rigor, incluem os filósofos iluministas franceses, Ricardo, e a economia clássica inglesa, além, é claro, de Hegel e Feuerbach, … conquanto a intenção é apenas demonstrar que um instrumental essencialmente marxista – a dialética – foi pinçada das teorias clássicas e jogado no nosso mundo jurídico, fato nem sempre percebido e quase nunca visualizado nem mesmo por muitos que falam em direito alternativo ou uso alternativo do direito.

O escopo, a rigor, também é nem entrar nessa seara, conquanto pactuo da idéia de que o uso de um instrumental teórico como a dialética, aplicado a situações complexas entre o justo e o legal, pode florescer alternativas.

Com razão, muitos magistrados têm levantado a ilegitimidade do congresso nacional, agora mais do que nunca os fatos corroboram os argumentos de homens como Amiltom Bueno de Carvalho, Aramis Nassif, Rui Portanova, entre outros. Que legitimidade tem um congresso nacional corrupto, podre, atolado na charneca da indecência? O atual congresso nacional não é produto de diversidade de classes, também não é reflexo da correlação de forças expressas na sociedade dividida em classes e estratificadas em camadas e estamentos. O atual congresso nacional é produto da imposição econômica e de seus grupos de interesses, da esquerda à direita.

Da dialética:

Engels, o parceiro predileto de Marx, no Anti-Durhing já afirmava que “a dialética é ciência das leis gerais do movimento e do desenvolvimento da sociedade humana e do pensamento”.

O filósofo existencialista francês Jean Paul Sarte, comentando sobre a dialética afirmava: “é a atividade totalizadora, ela não tem outras leis que não as regras reproduzidas pela totalização em curso e estas se referem, evidentemente, às relações da unificação pelo unificado, ou seja, aos modos e presença eficaz do devir totalizante, nas partes totalizadas”.

Oportuno e curioso é refletirmos sobre as considerações de Pedro Hispano, no século XIII, sobre a Dialética: “é a arte das artes, as ciências das ciências porque detêm o caminho para o caminho para chegar ao princípio de todos os métodos. Só a dialética pode discutir com probabilidade os princípios de todas as outras artes, por isso, no aprendizado das ciências, a Dialética deve vir antes”.

Gerd Bornhein, nosso grande e saudoso filósofo gaúcho, comentando sobre a Dialética assim asseverou: “ela existe para fustigar o conservadorismo dos conservadores como sacudir o conservadorismo dos revolucionários. A dialética não se presta para criar cachorrinhos adestrados“.

O argentino Carlos Astrada foi mais longe: “a dialética é semente de dragões”.

Pois este precioso instrumental de análise, pinçado para o nosso mundo jurídico por Roberto Lyra Filho, um instrumental marxista, tem embasado os pressupostos da assim chamada Teoria Dialética do Direito.

Ela tem se prestado para questionar a legalidade de certos direitos positivados, para questionar a legitimidade dos poderes e também para encetar uma profunda reflexão sobre certos direitos que não são positivados, mas que são legitimados pelo povo. Aponta luzes entre a legitimação e não positivação.

Existem direitos outros não legitimados, o direito a violência reativa é um deles. Ademais, a roubalheira dos políticos, apenas corrobora a tese do direito à reação. Por que passar fome, viver na inanição, quando os mercados estão aí abarrotados de comida? E o próprio direito ao furto se tornaria um direito, embora não reconhecido pelo Estado.

Por fim, o direito é apenas um elemento superestrutural que legitima a dominação de classes. Enquanto os ladrões voam em seus jatinhos portando malas abarrotadas de dólares, os pobres abarrotam os presídios. Abro aqui um breve espaço para sustentar que a falta de conhecimento de ciências sociais leva os nossos produtores jurídicos a cometerem erros como não dominarem os conceitos de infraestrutura e superestrutura, esse é bastante visível e novamente caio na velha tese de que os cursos de Direito, embora tenham o nome de CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS, na real, ninguém sabe nada sobre ciências sociais, derivando-se daí graves probemas de conceituação teleológica e ontológica.

Usemos, pois, a dialética para compreender o que nossos olhos nos traem e também para duvidar do certo e do justo criado por alguns. Existem outras certezas e outras justiças. E também Direitos, mesmo que não positivados. O jogo do bicho é a realidade mais explícita, as bocas de fumo, as clínicas clandestinas de aborto, que todos sabem onde fica e quanto custa um aborto, são direitos exercidos pelo povo, reconhecidos pela sociedade, porém, não positivados pelo Estado, apenas isso.

A questão mais prática que envolve o aborto, fora do debate sobre legalização ou não, seria solver o quadro pelo enfoque da descriminalização e pronto. Retirando do Código Penal os artigos que o fazem crime, deixa de existir o crime e o resto passa a ser um problema da sociedade.

O aborto é um direito que existe, é reconhecido pela sociedade, porém, não é positivado pelo Estado. Pela não positivação, o ideal seria simplesmente a descriminalização, que nada mais é que a retirada do Código Penal dos artigos 124 ao 128 e o assunto passaria a ser de ordem médico-profilática e sanitária.

O que os positivistas querem fazer é o caminho mais dificultoso. Querem subtrair a ilegalidade da prática, torna-la legal dentro de um jogo de forças totalmente adverso. É só olhar o peso das bancadas evangélicas e católicas no congresso nacional  que não precisa maiores digressões.

A teoria dialética do direito, aplicada a questão do aborto, certamente pela deslegalização ou descriminalização, sem aportar no arcabouço jurídico um dispositivo legal de positivação, seria a maneira mais factível de enfrentar a questão. Friso que pessoalmente sou contra o aborto, mas não nego a debatê-lo do ponto-de-vista jurídico e jurígeno. E também, convenhamos, social.

Por fim, meu lamento triste, pois falar em vertentes epistemológicas do Direito, hoje, soa algo tão estranho como a abordagem de uma solução da Dialética, como Método, pois quase ninguém mais sabe usar Método e – via de regra – confundem-no com metodologia.

Confesso que até hoje tenho dúvidas em tratar o direito como ciência, conquanto cada vez mais me parece com ideologia (na acepção gramsciana da expressão). Como amadurece muito em  mim essa questão, estou produzindo um texto onde coloco o Direito como Ideologia e não mais como Ciência. Mas já vou avisando, não escrevo para imbecis e ando chocado de tanto ouvir bobagens.


*É escritor, autor de 6 livros, jornalista brasileiro registrado no Ministério do Trabalho sob nº 11.175, jornalista com registro internacional nº 908225, Sociólogo e Advogado, filiado a SA OAB-RS sob nº 9980. 

 

Comentar no Facebook