Um miniconto surreal ou um mergulho no realismo fantástico?

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Nessa semana fui exorcizar meu espírito, enterrar meu coração nas areias do arroio Yancundá, em São Francisco de Assis. Foi o ritual mais doloroso da minha vida e lembrou-me a máxima do índio americano, já traduzido para o cinema por Dee Brow.

Sentei-me nas pedras e pude ver as cobras rastejantes. Quando – de repente – avisto Zaratustra, em seu voo rasante triunfal. Ela foi ter sua sentença fatal com o destino da minha vida.

Sentou-se ao meu lado e emitiu juízos decisivos sobre o final dos tempos, sobre a possibilidade possível do impossível e ali selou minha última esperança de vida.

Perdido, arranquei meu coração e entreguei-o em suas mãos. Ela pegou, apertou contra seu próprio peito, beijou-o e deixou o sangue escorrer pelos seus lábios e corpo.

Porém, quando achei que ela o guardaria para sempre dentro de si, eis minha surpresa. Estava entre a vida a morte, estive em Berlim, ouvia a segunda sonata wagneriana em ré menor, voltei a minha sinagoga de Jerusalém, veio o desfile de identidades, as missões na África, era um Kidon morrendo miseravelmente e assistindo ao enterro do seu próprio coração, pois Zaratustra, ao invés de guardá-lo, preferiu enterrar numa cova rasa nas areias do arroio Yancundá. Percebi que era o fim de tudo. Zaratustra tinha feito sua opção.

Ela percebeu que eu me esvaia, mesmo assim, seu olhar foi de profundo amor e reconfortante. Terno, doce, amável, eterno.

Fiquei ali estirado, imóvel, pressentia pedaços de mim pela areia, havia muito do meu espírito e fragmentos de minha alma. Era meu fim, a última chama de vida do meu ser, esta sendo sepultada para sempre.

Sem Antígona para sepultar meus restos, ainda assim assisto ao voo de retorno de Zaratustra, do eterno retorno. Esguia, voava numa plasticidade estética infactível de ser descrita. Voou tão alto que desapareceu de minha visão obscurecida e nauseabunda ante o ofuscamento visual daqueles instantes que separam a vida da morte.

Contudo, eu não morria. Por instantes, pressentia a ruptura da vida com o corpo. Depois, misteriosamente, a vida voltava. E assim vivi frações de segundos que duravam uma eternidade.

Foi num desses lapsos de tempo que percebo F. me olhando. Era minha amiga, não era Antígona. Percebendo que eu morria, desenterrou meu coração, com seus pragmatismo brusco e bruto  desenterra-o, enfia-o no meu peito, mas não recrimina Zaratustra. Ela sabia que o ritual era necessário e que eu lutava por um amor que desse sentido a minha existência.

Pegou-me, arrastou-me. Pôs um blusão preto para tapar o sangue que corria sobre azul de minha camisa e sentenciou: deu Júlio, tu tens que voltar, tu tens a Nina, ânimo companheiro.

No carro, deu-me água, passou a mão na minha testa e sentenciou: nunca tinha visto um amor assim. Referia-se a minha entrega, absurda – para os padrões dela.

Minha filha, apesar dos 12 anos, adora os contos do Gabriel Garcia Marques, os quais a conto desde os 4 anos. Já inventa histórias e colocou esmeraldas nas bergamotas da avó dela, ao invés das esmeraldas das laranjas do Gabo. Apenas uma mudancinha.

Eu não sou Schopenhauer, mas sou Schopenhauer quando não escrevo para tolos. Não sei bem se transito entre o realismo fantástico ou o surrealismo.

Só sei que o homem precisa da arte para não morrer afogado na verdade e na realidade, parafraseando Nietzsche. Essa construção textual é ficção, porém, é verdadeira, em suas metáforas. Tudo foi assim mesmo.

Por ter amado um amor verdadeiro, deixei fragmentos do meu coração, cacos de minha alma, pedaços do meu espírito espalhados pelas areias do Yancundá. Não poderia ser diferente.

Volto para minha filha, voltaremos a fazer pique-niques pelas taperas, brincaremos juntos, manteremos nosso amor enquanto eu sobreviver, não haverá o bolo de chocolate com Zaratustra.

Já não sinto mais dores, estou adormecido, caído, cansado, quero apenas repousar no catre escuro e sonhar.

VOLTO…

Levo um choque, minha filha está crescida, cabelo pintado de vermelho. Mudou tudo em sua vida e agora … ela me fala como uma moça, apesar de seus doze anos. Deu-me uma missão ….tudo mudou….

Ponto final.

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