Maneiras trágicas de matar uma mulher

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O festejado livro de Nicole Lourax, Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher, Imaginário da Grécia Antiga, agora está disponível na internet, pela PASSEI DIRETO, totalmente grátis.

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Sumário e Trechos

Sumário



  7    Prólogo 

15    Distribuição 

21    Maneiras trágicas de matar uma mulher



27    A Corda e o Gládio

Um suicídio de mulher

por uma morte de homem 27

Uma morte desprovida de andreia 29

A incisão no corpo viril 33

Enforcamento ou sphagé 36

A esposa que se lança 42

O silêncio e o segredo 48

No thálamos: morte e casamento 51

Morrer com 53

A glória das mulheres 56



63    O sangue puro das virgens

Sacrifícios  em  que  é  bom  pensar  64 

Novilha, poldra: domadas 68 

Da  execução  como  casamento  72 

Liberdades virginais 80 

A glória das moças 88







91    Lugares do corpo

0  ponto  fraco  das  mulheres  92 

Enumeração do corpo viril 97 

A alternativa de Polixena 101



116    Notas

139    Sobre a autora







Prólogo



“Mortes representadas em cena, grandes dores, 

ferimentos”: acontecimentos da tragédia, espe-

táculos para os olhos. Considerando os exem-

plos  dados  por  Aristóteles  para  ilustrar  sua 

definição do pathos trágico como “ação causa-

dora de destruição ou dor”  1 quem poderia 

duvidar um instante sequer de que, no teatro 

ateniense,  a morte  não tenha sido realmente 

exposta à visão do espectador? Thanatói en tói  

phanerói:  agonias em público, assassínios di-

ante dos olhos de todos... Lendo mais uma vez 

com perplexidade a frase de Aristóteles, tomo 

a decisão de advertir o leitor de que, nas pági-

nas  seguintes,  o  ouvinte  da  tragédia  levará 

vantagem sobre o espectador: tudo passa pelas 

palavras,  porque tudo se passa nas palavras, 

principalmente a morte. Investigando as mo-

dalidades trágicas da morte das mulheres, nada 

encontrei que seja visto ou que seja primeiro



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visto. Tudo começou por ser dito, por ser ou-

vido,  por ser imaginado – visão nascida das 

palavras e presa a elas. Assim, ao empenhar-me 

em um longo exercício de leitura, tentei captar, 

pura e simplesmente, aquilo que dava de ime-

diato ao público antigo o gozo intenso do pra-

zer de ouvir.



Palavras lidas para substituir ou mesmo 

para reencontrar as palavras ouvidas, aquelas 

que a representação trágica oferecia  à  escuta 

ativa do público ateniense. Palavras de duplo ou 

múltiplo sentido. Em síntese, texto, nada mais 

que texto. Pode ser que contar “muito mais com 

a imaginação que com a vista,  mais  com o 

ouvido que com o olho”  2 seja uma escolha 

minha, mas que importa? Na Atenas do século 

V  a.C, essa foi a escolha do gênero trágico. 

Não tentarei prová-lo. Precisaria para tanto de 

mais que um prólogo, e somente por prazer, ou 

de memória, evocarei algumas das razões que 

levam a colocar a tragédia sob o signo da es-

cuta.



Há, inicialmente, as razões do historiador. 

Seria necessário evocar o apego decididamente 

etimológico  dos gregos  à  sua língua e o amor 

que eles demonstram por suas palavras (que 

eles chamam de “nomes”). Conviria lembrar 

até que ponto, no século V ateniense, as regras 

da escuta dominam esses discursos cívicos que



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denominamos  um pouco impropriamente gê-

neros literários. Ouso mesmo formular a hipó-

tese de que, no teatro de Atenas, a escuta era, 

para o público da representação trágica, como 

que  uma leitura  muito  refinada,  à  altura  da 

“profundidade” do texto3. Se o espectador anti-

go, tal como gostamos de imaginá-lo depois de 

1er Jean-Pierre Vernant, tiver sido esse espec-

tador de ouvido apurado para quem a “lingua-

gem do texto pode ser transparente em todos os 

níveis,  em  sua  polivalencia  e  em  suas 

ambigüidades”4, então temos de atribuir a esse 

ouvinte onipotente uma atenção da qual o mí-

nimo que se pode dizer é que ela quase não 

tinha flutuações, uma memória por nós total-

mente esquecida e a capacidade espantosa de 

realizar o longo trabalho sobre o significante 

durante o curto tempo da representação teatral. 

Ficção, talvez, mas ficção necessária. Podemos 

então formular a hipótese de que, arrebatado 

pela profundidade polissêmica do texto, o leitor 

se empenha na interminável busca das palavras 

em eco.



O historiador já se afastou na ponta dos 

pés. Resta o texto e, diante do texto, seus usu-

ários muito contemporâneos. Na primeira linha 

destes estão o diretor e os atores. Não espere-

mos, entretanto, que eles tornem a dar um cor-

po à idéia de espetáculo5. Por pouco que seja



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interrogado, o diretor confessará a dificuldade 

que enfrenta para convencer os atores a dizerem 

– a somente dizerem e sobretudo a não repre-

sentarem – as grandes unidades textuais com-

ponentes de uma tragédia: o coro do Agamêm-

non sobre o sacrifício de Ifigênia, a narração da 

morte de Dejanira nas Traquínias ou a imola-

ção de Polixena na Hécuba6.



Resta ao leitor, então, aceitar até o fim a 

aposta no texto. Leitora de tragédias, não tive 

aliás escolha. Fui constrangida a isso desde que, 

procurando traçar as vias trágicas da morte das 

mulheres, tive de admitir que essas vias eram 

textuais.  Nada  encontrei  além  da  narração. 

Como se só se pudesse confiar a morte das 

mulheres às palavras, como se apenas as pala-

vras soubessem levá-la a termo. Para isso há 

seguramente razões históricas, razões de civi-

lização: uma mulher grega vivia sua existência 

de moça, de esposa e de mãe no lugar mais 

recôndito da casa; ela também devia partir desta 

vida de sua casa bem fechada, ao abrigo dos 

olhos, longe de todo o público. Mas, seja como 

for, a decência, ainda que sociológica, nunca 

bastou para explicar tudo.



Não é difícil admitir que os sacrifícios das 

virgens – este puro desvio – só possam rea-

lizar-se no terreno da narração; a tragédia co-

loca as moças em cena apenas para dela tirá-las



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e para entregá-las, longe dos olhos, ao cútelo do 

degolador: execução escandalosa, ficção satis-

fatória narrada passo a passo pelos mensageiros 

em linguagem técnica cujas palavras carregam 

o impensável com todo o peso do real. Faz bem 

matar as moças em pensamento, em narração. 

Mas há também o suicídio das esposas, que 

vem complicar tudo, porque é revelado também 

pela narração, e não pela visão. Estarão essas 

desesperadas realmente cometendo uma espé-

cie de transgressão, para terem de voltar a ocu-

par  precipitadamente  seu  lugar  –  sombrio, 

oculto, fantasmático – para então encontrarem a 

morte cuja narração ao público dependerá de 

uma ama ou de um servidor? É nessa reticência 

em mostrar a morte que a invenção trágica da 

feminilidade encontra, sem dúvida alguma, seu 

limite, com essa maneira que as esposas perdi-

das têm de voltar ao seu lugar para rematar uma 

ortodoxia. Mas isso não é tudo: recorrer à or-

dem da linguagem7 para matar Fedra ou Deja-

nira talvez seja uma das dimensões
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