Penso, logo sou um cadáver em Santiago. Produzimos o inverso da lógica cartesiana

Paira uma atmosfera tétrica sobre os céus noturnos de Santiago. Nuvens cinzentas e escuras cobrem as estrelas e movem-se como se ensaiassem um balet em câmera lenta, um longo vem-e-vai sem começo e sem fim, apenas passeante e misterioso. Um vento frio e levemente forte parece conduzir segredos não revelados da angústia de uma sociedade. Ao contrário da tradicional alegria nos sorrisos, do gestos expansivos e festivos, noto as pessoas retraídas e querendo buscar algo de dentro de si mesmas. É o frio da noite, parece prelúdio do outono. Paira uma sensação de introspeção coletiva e nesse quadro sombrio debruço-me na vã tentativa de decifrar o imaginário social. Saio para fora da cidade e contemplo a paisagem noturna ao longo, o lusco-fusco dos faróis e luzes, o silêncio cortado pelos sons dos animais noturnos. Ecos de músicas, vozes perdidas se entrelaçam no mistério que reina.

Penso na razão de ser da cidade, na aglutinação de pessoas, nos bairros, nos serviços públicos, no trabalho e na lógica que alimenta vida, com seus mistérios, costumes, ritos e mitos. O hospital, majestoso, é um símbolo da vida pari passu as cercanias mortuárias de funerárias de plantão, ávidas por um cadáver sem vida. E isso não é redundância, existem muitos cadávares andando pelas ruas, sobre esses Nietzsche já vociferou. Penso que poderiam estar noutro lugar, seria mais confortante para os doentes e inválidos que sabem que o próximo leito é o catre do necrotério. Aliás, outro dia, um sábio ignorante desses que faz escola em nossa cidade, ironizou de mim que escrevi sobre os cadáveres mortos. Se esse tolo ao menos conhecesse as metáforas de Nietzsche aos cadáveres, homens vivos, acríticos, que são conduzidos pelos outros, pouparia-me de explicações idiotas.

Penso nos ritos fúnebres pelos quais todos nós passamos um dia. Cerimônias, rezas e orações, cortejos e tudo é compreensível pela linguagem dos semblantes, que não se expressa, apenas exprime uma feição de dor.

Mas tudo são ritos. Do encontro de um casal a geração de uma criança, o berçário, a lógica dos primeiros passos, a educação, o lar e a família. Em meio a tudo isso, as convenções e os códigos morais. A televisão substituiu a velha moral dos livros e ensina novos costumes ao coletivo social pela cabeça única de um diretor em busca de audiência. Noto famílias hipenotizadas e presas a magia fantástica da telinha que seduz, dita regras e molda comportamentos.

Pelos cantos da cidade, escolas, quadras de esportes, bares, praças, clubes, ruas, postes de luzes, canos conduzem água, é a corporificação de infra-estrutura necessária para ser: cidade.

No meio de tudo, homens e mulheres, com seus sonhos, decisões, buscas, manifestações. Nós, criamos e tentamos traduzir um pouco do que vemos, fizemos da informação, um comércio. Os agentes de repressão do Estado agem pela manutenção da ordem e existem na suposição da desordem. Crianças violentadas, agressões, ódios que afloram, comportamentos que expressam a violência, manifestação de apelo aos instintos, eis que todos precisam de um regramento forte por normas de conduta e convívio sociais. Psicologia do ajuste, psicanálise coletiva, direito da repressão e opressão, pobres em seus cantos e ricos em suas mansões. Nada de arte de roubos e furtos, o caminho pode ser o presídio, o enjaulamento. Os agentes estão a postos. Cuidando, ganham para isso, são pagos pela lógica de um sistema tributário perverso.

Denominações religiosas acotovelam-se na disputa pelo exército de uma multidão que insiste em segurar-se numa crença e numa fé, mesmo que essas sejam sintetizadas e sistematizadas por homens em busca de poder e império. E o ópio do povo, crack do povo, cocaína do povo, Marx usou ópio devido a época, hoje seria uma droga sintética qualquer … do povo. Até eu preciso desse ópio.

Penso na tolice e nas mentiras que grassam. A lógica da vida é perversa, pois somos acostumados a mentira e a ruptura com essa pode significar o mais terrível exílio social. É um exílio atípico, dentro de nós mesmos, no seio social, que pune com as regras invisíveis.

E continuo olhando a noite de Santiago. Andando sem rumo, tentando decifrar a lógica embutida em cada terreno, em cada casa, em cada carro, em cada bairro. Andando, perambulando, vejo lojas, vitrinas, bares, comércio.

Sinto asco de tudo e nego-me a ser Descartes e a lógica de um funcionamento social como um aparelho humano. Para que discursos metódicos? Há um pavor de tetricidade em tudo, inclusive no gozo; não sem razão David Cooper proclamou o orgasmo como um mergulho irracional na morte e a certeza do regresso, misteriosamente, assegurado.

Nesse pavoroso juízo social em que as instâncias bachelarianas apresentam-se tênues, extremamente frágeis, resta-me apenas a maldita e maravilhosa dialética e a relativização quase absoluta de tudo.

A questão central de tudo é a aceitação das convenções, posto que está indicado o caminho da redenção. O inverso, é a maldição social. Ainda bem que a moderna era da telemática soou um conforto para os malditos, deixando a expressão on line. Mas mesmo para esses malditos, o custo da maldição ainda é aceitação mínima de algumas regras, senão restará o abismo total: a palidez de um túmulo, o asilo da decrepitude social ou a degenerescência progressiva até a consumação física do corpo.

Racionalizando tudo isso, vivo. Fujo na literatura, passo viajando e em cada viagem descubro-me mais encerrado em mim mesmo. É o custo de não aceitar as convenções e da descoberta de toda a lógica que encerra um agrupamento social. Resta-me escrever como uma forma de vingança, embora arda o custo de saber que raros conseguem ler-me.

Quisera ser mais fantasia, cobiço a fantasia, preciso da fantasia.  Enquanto nada acontece, escrevo enquanto olho a cidade noturna. Penso, logo sou um cadáver em Santiago. Para eu ser a lógica cartesiana, não posso pensar e nem ser o que sou. Por isso, tantos não pensam e aceitam tanta imbecibilidade. Ou se pensam, fingem que não pensam para serem aceitos. Somos todos escravos das convenções sociais.

Diderot: “ou muito me engano ou o gênero humano será subjugado a cada século por um punhado de enganadores”.

Maurice Barrés, o ultraconservador do século XX, considerava Diderot e Rousseau “as duas grandes forças da desordem”, segundo ele, “responsáveis por muitos males”.

Denis Diderot logo compreendeu a determinação das estruturas sobre a ação do indivíduo e escreveu: “ sou como sou, porque foi preciso que me tornasse assim. Se mudarem o todo, também serei mudado, o todo está sempre mudando”.

Em sua espetacular obra, “No sonho de D´ALEMBERT”, colocava palavras na boca de um amigo que, sonhando pronunciava: “ todos os seres circundam uns aos outros. Tudo é fluxo perpétuo. O que é um ser? A soma de um certo número de tendências. E a vida? A vida é uma sucessão de ações e reações. Nascer e viver e morrer é  mudar de forma”.

Já na obra “NO SUPLEMENTO DE À VIAGEM DE BOUGAINVILLE”, o sábio Diderot aconselhava a desconfiar de todas as instituições, civis, políticas, religiosas e foi mais longe “ ou muito me engano ou o gênero humano será subjugado a cada século por um punhado de enganadores”.

Entretanto, a obra prima de Diderot é mesmo o “O SOBRINHO DE RAMEAU”, sendo que nessa magnífica obra o filósofo relata a conversa com um jovem vigarista; porém, de uma forma genial, coloca na boca do vigarista uma audaz defesa da vigarice, cujo escopo era atingir a moral vigente.

Séculos se passaram e as previsões desses filósofos são tão atuais como a telemática nos dias de hoje.

Em Eneida, de Vergílio, canto 2, verso 65, aparece a frase: “ab uno disc omnes”, que quer dizer: por um se conhece a todos.

O momento político é de descrédito total na política e nas instituições.

Rousseau, citado por Barrés, também como força da desordem, também não tinha confiança na razão humana. O problema que Rousseau se defrontava era assegurar as bases de um CONTRATO SOCIAL que permitisse aos homens terem na vida social a liberdade capaz de compensarem o sacrifício da liberdade com que nasceram. Observando a sociedade e suas estruturas e superestruturas, é fácil identificar a ação das estruturas sobre os homens, principalmente a infra-estrutura econômica e a superestrutura jurídica. Rousseau pregou mudanças profundas e  elas deveriam ser feitas por homens organizados e sérios. E mais: previu que elas não seriam pacíficas.

Séculos nos separam de Diderot e Rousseau, precisamos nos unir e reverter esse quadro socioeconômico da nossa região.

Torço para que tudo de certo. Covardes não fazem a história. E que essa luta desse grupo seja um sentido em nossa vida, como foi no coração, na mente e na alma de Diderot e Rousseau.

Nada como um dia após a outro

Em 2008, quando defendi o monitoramento do centro por câmeras de segurança, 90% dos presentes no CES deram risada e acharam a proposta utópica. Eu era candidato a prefeito. Hoje, inauguram os sistemas com pompa em todas as esquinas. Nada como um dia após o outro.

Da lição que surge do Estado Islâmico do Iraque e do Levante

Em 2003, quando os EEUU invadiram o Iraque atrás de supostas armas químicas, houve um erro tático incrível ao eliminarem, em 2006, Saddam Hussein e todo a alta cúpula sunita. Ao mesmo tempo em que isso aconteceu, curiosamente os xiitas ascenderam ao poder; da mesma forma, os curdos ganharam autonomia, espaço político e até uma região autônoma dentro do Iraque.

A história nos é bem conhecida. As armas químicas nunca foram encontrada, Saddam foi enforcado, seus principais líderes assassinados e os xunitas perseguidos e tratados como se não existissem.

Ocorre que eles existem, com o tempo foram vendo a extensão do vilipêndio perpetrado contra eles; da mesma forma, os sunitas foram vendo a aliança que se consolidava entre os xiitas do Irã com os xiitas iraquianos, mais as estreitas relações com o governo da Síria.

Agora, os sunitas do Iraque organizaram-se, uniram-se os sunitas do Irã e da Síria e auto-proclamaram o  Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS). Seus métodos são violentos demais até para os padrões árabes, demarcaram um território e têm disseminado um terror sem precedentes; até o xiitas estão em pânico com o nível da violência sunita e do barbarismo.

Embora a imprensa ocidental apresente o pessoal do ISIS como um grupo terrorista, a verdade é que eles são ultra-politizados, pregam a formação de um Estado muçulmano transnacional, a volta de um califado que mescla ciência política com religião. Ademais, a proposta ousada e sem precedentes engloba uma parte da Síria já como integrante do califado.

Esse movimento sunita e essa proposta do Califado sob  a então liderança de Abu Bakr al-Baghdadi, somado ao terror e a violência, têm gerado situações inusitadas e sobre as quais sequer sabemos raciocinar; a primeira delas, é que – hoje – os EEUU e todas as potências ocidentais estão aliados  com os xiitas, tanto do Irã, do Iraque quanto da Líbia. Isso é inédito. Segundo, essa situação toda, tal como colocada, é apenas conseqüência do que os EEUU fizeram ao invadir o Iraque, ao assassinar Saddam Hussein e todo o alto comando sunita. Terceiro, isso é também reflexo do isolacionismo a que os impérios ocidentais, somados aos xiitas e aos curdos, fizeram aos sunitas.

Os sunitas, encurralados, desprezados, humilhados, achincalhados, viram no terror e na violência uma forma de dar uma resposta ao desprezo a que foram submetidos.

A lição é altamente pertinente e enseja reflexões e estudos de nossa parte.

Um povo sem história é um povo sem memória

A produção teórica local, até hoje, não conseguiu sistematizar, mininamente, as razões da ampla hegemonia de um só grupo político no espectro partidário local. A condição de micro-pólo regional de nossa cidade, inclusive sediando um COREDE e uma universidade regional, não evoluiu do ponto-de-vista teórico e continuamos todos capengas. Não existem reconstruções político-partidárias, análises acerca do desenvolvimento das forças produtivas locais, e nem análise histórica sistematizada de nada, nem do moinho santiaguense (gênese da tritícola), nem do nosso hospital e sua princesa alemã, Irmã Guda, nem dos grandes períodos socioeconômicos, por exemplo, anteriores a revolução de 30, estado novo, período liberal/democrático de 46/64, ditadura, abertura, diretas…nada. Absolutamente nada.

Isso é preocupante demais, especialmente para uma cidade educadora.

Analisar os fatos históricos não é empreender relatos crus com nomes, datas e resultados. Para tal, basta uma leitura nos obituários. Analisar – criticamente – a história é explicar os porquês da união de determinadas forças políticas em sintonia com uma atividade econômica dominante. Nesse contexto, é imprescindível compreender porque os fazendeiros, ligados a pecuária, se agrupavam em torno da cooperativa rural e – majoriatariamente – da ARENA 1. O mesmo raciocínio valeria, a rigor, para as forças da agricultura, agrupadas dentro da cooperativa tritícola e da ARENA 2. Se não existe leitura oficial e nem uma historiografia local, que não seja oral, afeta aos principais elementos do nosso breve processo histórico de dominação, pior ainda é o espectro das forças dominadas, cuja história, além de não existir, é contada pelos dominantes.

Falta, inclusive, uma análise atual acerca dos grandes points ideológicos que emergiram recentemente, da URI ao HCS, que atualmente fazem o papel que – no passado – foi reservado às cooperativas rural e tritícola. Urge, da mesma forma, um debate sobre o Sindicato Rural patronal e sua influência no grupo hegemônico local. Por outro lado, o mesmo raciocínio vale para o Sindicato dos Trabalhadores rurais, o Sindicato dos Servidores Públicos, assim como esses sindicatos ligados as atividades privadas, onde vale destacar o dos comerciários, metalúrgicos e construção civil, dentre outros.

E aí me questiono: por que é que as universidades locais não se interessam pela sistematização da história local? Por que é que não gravam horas e horas dos relatos dos tradicionalistas da narração oral? O que será de nós, daqui a 50 ou 100 anos, quando quisermos buscar referências históricas de nós mesmos?

Não podemos ignorar que existe uma tendência mundial de desglobalização pari passu com a volta ao localismo, que é exatamente a narrativa dos valores locais. Jaguari, por exemplo, dá um show em Santiago com os livros de José Newton Marchiori e Otto Gambert.

Outro dia, escrevendo sobre Santiago, nas longas anotações que faço, possivelmente para serem usadas um dia, depois de minha morte, ocorreu-me de registrar sobre uma guerra das rádios na eleição de 1972; em oposição a Rádio Santiago, que era de Rubem Lang (depois, vendeu-a a Jaime Pinto) a ARENA criou a Rádio Itu AM, que funcionava na clandestinidade para opor-se a Santiago, que era controlada pelo MDB.

O que quero dizer com isso, colegas de imprensa, blogueiros, políticos, educadores,… é que tudo isso está se perdendo. E se não registrarmos agora, será um caos no futuro. Seremos um povo sem história, com um passado louco, sem registros.

O que temos anotado sobre as primeiras indústrias de Santiago? Nada, nunca vi nada, exceto o que eu próprio escrevi. E já tivemos uma grande fábrica de sabonetes e derivados em 1922, da família Piva. Então, onde está o resgate dessa memória histórica?

Estamos preocupados em ganhar e lucrar, somos estúpidos, nossa mentalidade é bovina, somos avessos à cultura,  cultuamos a idiotice coletiva, insuflada por nossa mania egocêntrica de nos acharmos melhor que os outros porque temos meia dúzia de despreendidos que empilham palavras e fazem versos. Que culturaé essa se não temos nem um processo de resgate histórico da memória municipal?

A máxima, que caracteriza os anais históricos do povo judeu precisa ser repetida em Santiago, por isso o título.