Hemingway, Dostoiévski, Hegel, Kundera e quando Nina vivia mergulhada em Maruo e os mangás com o expressionismo germânico e o surrealismo/sobrerrealismo de Salvador Dalí

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*JULIO PRATES
Nesses dias prolongados  de inverno  consegui sair fora da rotina da prática jurídica, voltei-me aos problemas da nossa língua e o reencontro com a escrita e a busca de tempo para os encantadores filmes que amo.
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Assim, o primeiro filme que curti intensamente foi Hemingway & Martha. O filme é dirigido por Philip Kaufman que também dirigiu o fabuloso filme A Insustentável Leveza do Ser, adaptado do romance de Milan Kundera, de mesmo nome. Inspirado nessa velha recordação e também porque conheço um pouco a obra de Hemingway, optei por assistir Martha antes de todos. Aliás, conheci Hemingway aos 15 anos, quando tive a rara oportunidade de frequentar a biblioteca comunista na casa do saudoso Aparício Gomes da Silveira.
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Martha, no cinema, é interpretada por Nicole Kidman, que até se sai bem…Judia, disposta a ser repórter de guerra, envolve-se com Ernest dentro de sua própria casa e ante os olhares da  sua própria esposa. 
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Para quem conhece um pouco da obra de Hemingway e aspectos psicológicos de sua vida, especialmente nós – americanos do sul – é fácil inferir que Philip Kaufman não foi muito feliz ao apresentar um escritor extrovertido, festivo, beberão, sedutor e altamente engajado com a política oficial de Moscou. Creio que não foi feliz nessa tentativa. 
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As ilações acerca das posições políticas de Hemingway com o contexto da guerra espanhola foram muito óbvias. Ademais, Hemingway não era de viver se vangloriando (parece até que Kaufman buscou inspirações santiaguenses  kkkkkk). O escritor era modesto, tímido, recatado e depressivo. Tanto, que terminou sua vida com um tiro na cabeça, em julho de 1961. É claro que os escândalos e aventuras de Hemingway são notórias, mas daí criar um perfil psicológico distinto, vai um abismo. 
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Creio que já estava na hora de produzirem um filme honesto sobre Ernest  Hemingway e sua atribulada vida. Esse, é centrado em Martha e deixa muito a desejar. É um bom filme, bom, mas nada que lembre A Insustentável Leveza do Ser. Fiquei um pouco frustrado. 
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O segundo filme que assisti, atualizando-me, OS MISERÁVEIS, inspirado na obra de Victor Hugo. Esse sim é um filme de rara qualidade, alta sensibilidade, e profundamente impactante. A história transcorre  no curso da Revolução Francesa. O personagem Jean Valjean rouba um pão para alimentar sua irmã mais nova e termina preso. As narrativas das perseguições ao ex-preso são chocantes. Ademais, existe uma boa especulação acerca do drama da readaptação de um ex-preso e sua redenção. A fotografia é demais e diria até que se trata de um filme perfeito.
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No retorno à advocacia, após a pandemia, sinto-me a vontade para emitir um juízo, pois noto que o dia-a-dia da advocacia embrutece, é tudo muito mecânico e não existe espaço para especulações sociológicas, psicológicas e filosóficas. É tudo muito seco, muito óbvio, muito feijão com arroz, muito formalismo preso a regras prontas e rígidas.
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Contudo, buscando transcender esse quotidiano cruel e mecanicista, achei tempo para vasculhar o sebo do meu amigo Joel Girelli. Eu tenho algo em torno de tinha uns 4 mil livros, mas aposto que perdi a conta dos que estão na rua. 99% das  pessoas que levam livros emprestados, não devolvem. Antes, não me importava em doar meus livros. Agora, mudei. Ensinei a Nina que ela deve viver no meio dos livros e convenci-a de que os meus livros serão dela quando crescer. Assim, ela tem me ajudado a cuidar da biblioteca e também me impulsionou a fazer novas aquisições. Comprava em média 10 a 15 livros por mês. De cada 10 livros que compro, 9 são usados. Raramente compro livros novos, exceto alguns de Direito. Mas sou sebeiro por amor e identidade.
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Mas na semana passada fui extremamente feliz em minhas aquisições. Encontrei os volumes 1 e 2 de CRIME E CASTIGO, de Dostoiévski, capa dura, em ótimo estado de conservação, de uma coleção editada em 1979, pela Editora Abril. Da mesma coleção, no mesmo estado, encontrei também OS LUSÍADAS, de Camões, (tinha apenas uma edição de bolso), DECAMERÃO de Boccaccio e Machado de Assis (esse comprei apenas para guardar).
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Por outro lado, recebi uma coleção de Karl May, que houvera mandado encadernar. Ficou muito boa e também isso deixou-me profundamente satisfeito. Essa coleção pertenceu ao médico e advogado Guido Emmel, mas estava em precário estado de conservação.
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Assim, curti intensamente as trevas da pandemia aproveitei bem meu tempo, fugi do quotidiano massante do Direito e pude novamente compenetrar-me naquilo que eu mais gosto de fazer: lidar com meus livros, apreciar bons filmes, no almoço, curtir minha filhinha e escutar música clássica. Apenas não tomo vinho e segui até hoje nesse ritmo.
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E assim vou indo, tocando a vida e vivendo em Santiago. Esses foram os dias importantes em minha vida.
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Nossa sociedade continua sendo uma sociedade de aparências, ou, como dizia a Nina, de imagens. Aqui, a essência não tem voz e nem espaço e quem tenta ser essência logo é linchado. Somos uma mentira e uma farsa. Será que alguém percebe que quando uso os conceitos aparência e essência sou vivamente hegeliano? Hegel, Hegel, Hegel, quantas pessoas leram Hegel em nossa sociedade?
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Deve ser por isso que nunca fui convidado para a feira do livro de Santiago, que, na verdade, é dos donos da cidade. Do contrário, como explicar que um santiaguense, editor com prefixo editorial próprio de ISBN, autor de 6 livros, nunca sequer foi convidado para a feira do livro de Santiago? 
Ficava feliz com Nina … e – às vezes – notava-a debruçada sobre grossos livros de Harry Potter. Já é um começo. Sem questionar a literatura.
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Casualmente, nunca tive identidade com J.K. Rowling. Outra paixão de Nina são os mangãs e Suehiro Maruo, onde ela mergulha no mundo das gueixas e samurais, embora o mérito de Maruo, com sua vasta obra sobre  o Japão, com fortes traços do expressionismo germânico e do surrealismo ( ou sobrerrealismo) de Salvador Dalí.
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É um começo, mesmo imperceptível.
Fiquei com medo de ferir minha psicóloga com a tônica de minha fala acerca da ética e da honra. A honra dos samurais é odiada pelas feministas de esquerda, pois consideram tudo muito machista. Mas é o paradigma de honra que mais me seduz, inclusive o harakiri (Seppuku).
Minhas grandes derrotas geraram-me por não aceitar a quebra da palavra empenhada. Deriva-se daí meu conceito de honra e honra para mim é tudo. Admito perder tudo, menos minha honra.

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Poderia ser cálido?

*Júlio Prates é jornalista com registro nacional nº 11.175 no MTb-RS,  jornalista internacional com registro nº 908225 no Ministério da Cultura do Brasil. Bacharel em Sociologia e Bacharel em Direito, inscrito na OABRS nº 87557. É autor de 6 livros e pós-graduado em Leitura,Produção, Análise e Reescritura Textual. Pós-graduado em Sociologia Rural e Teologia.

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