Questionamentos e perplexidades sobre a Emenda Constitucional nº 125/22

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CONJUR é doutor em Direito Processual Civil pela Universidade de São Paulo, pesquisador visitante nas universidades Harvard e Yale, pós-graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Università degli Studi di Milano (Statale), em Milão, graduado em Direito pela USP.

Em mais uma manifestação da famigerada “jurisprudência defensiva”, a Emenda Constitucional nº 125/2022 (EC 125/2022), que acrescentou os §§ 2º e 3° ao artigo 105 da Constituição, foi publicada na página 3 do Diário Oficial da União do dia 15 de julho de 2022, quando ela entrou em vigor (cfr. artigo 3º da EC 125/2022), data na qual passou a ser requisito de admissibilidade dos recursos especiais para o Superior Tribunal de Justiça interpostos a partir da referida data (cfr. artigo 2º da EC 125/2022) a demonstração da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que a admissão do recurso seja examinada pelo Tribunal, o qual somente pode dele não conhecer com base nesse motivo pela manifestação de 2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento” (cfr. § 2º do artigo 105 da Constituição Federal).

Além do repúdio à criação de mais uma barreira, das muitas que já existem, para os jurisdicionados acessarem o lá denominado “Tribunal da Cidadania”, a redação dessa emenda constitucional traz diversos questionamentos e perplexidades, decorrentes da atecnia constitucional, processual, matemática e do próprio funcionamento dos julgamentos dos recursos especiais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça; o que gera dúvida se quem redigiu a respectiva proposta de emenda constitucional algum dia atuou no Superior Tribunal de Justiça, ou mesmo se houve algum assessoramento técnico processual mais especializado para tanto.

A primeira perplexidade que surge é quanto aos quóruns para rejeição da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no recurso especial ao STJ.

Isso porque, quanto ao “órgão competente para o julgamento“, no Superior Tribunal de Justiça os recursos especiais podem ser julgados ordinariamente por uma das seis Turmas especializadas das “três áreas de especialização estabelecidas em razão da matéria” (cfr. artigo 8º do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça — RISTJ), sendo que cada Turma do STJ é composta “de cinco ministros cada uma” (cfr. § 4º do artigo 2º do RISTJ); fazendo com que, nos termos do § 2º do artigo 105 da Constituição, a “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no recurso especial a ser julgado em Turma do STJ somente possa ser rejeitada pelo voto de quatro ministros, já que “2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento” (cfr. § 2º do artigo 105 da Constituição), isto é dois terços dos cinco ministros que compõem cada Turma do STJ resultaria no quórum absurdo, já que em dízima periódica, de 3.33333333333… ministros, o que, nos parece que seja fisicamente impossível, ainda…

Portanto, nos termos do § 2º do artigo 105 da Constituição, são necessários quatro votos para rejeição da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no recurso especial a ser julgado em Turma do STJ.

Já se o recurso especial for afetado para julgamento pelo sistema dos recursos repetitivos, nos termos do artigo 256-I RISTJ, o “órgão competente para o julgamento” poderá ser ou uma das três Seções especializadas (cfr. inciso do X artigo 12 do RISTJ) ou a Corte Especial do STJ; sendo que cada Seção especializada é integrada “pelos componentes das Turmas da respectiva área de especialização” (cfr. § 3º do artigo 2º do RISTJ), isto é, normalmente cada Seção do STJ é composta por dez ministros (cinco ministros de cada uma das duas Turmas que compõem a respectiva Seção), fazendo com que, nos termos do § 2º do artigo 105 da Constituição, a “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no recurso especial repetitivo a ser julgado somente possa ser rejeitada pelo voto de sete ministros da respectiva Seção, uma vez que “2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento” (cfr. § 2º do artigo 105 da Constituição), isto é dois terços dos dez ministros que compõem cada Seção do STJ resultaria em mais um quórum absurdo, também em dízima periódica, de 6.66666666666…ministros; razão pela qual são necessários sete votos para rejeição da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no recurso especial repetitivo a ser julgado em Seção do STJ; mesma quantidade de votos necessária para rejeição da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no recurso especial “não repetitivo”, isto é, quando um recurso especial for afetado à Seção para ela “sumular a jurisprudência uniforme das Turmas da respectiva área de especialização” (cfr. inciso III do parágrafo único do artigo 12 do RISTJ).

Se o recurso especial repetitivo for afetado para julgamento pela Corte Especial do STJ, a “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” somente poderá ser rejeitada pelo voto de 10 (dez) ministros, ou seja “2/3 (dois terços) dos membros do órgão competente para o julgamento” (cfr. § 2º do artigo 105 da Constituição Federal), isto é dois terços dos “quinze Ministros mais antigos” (cfr. § 2º do artigo 2º do RISTJ) do STJ que integram a Corte Especial.

Todavia, não duvidem os jurisdicionados que apesar de serem aparentemente altos os três possíveis quóruns de votação para rejeição da “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas“, essa rejeição muito provavelmente será feita de forma “virtual”, robotizada e de cambulhada. O tempo nos dirá se isso irá se confirmar ou não, esperamos estarmos errados nessa previsão, mas sem muita esperança pelo calejamento de mais de 20 anos atuando no STJ.

A segunda perplexidade que surge em relação à EC 125/2022 está no § 3.º que foi acrescido ao artigo 105 da Constituição, porque aqui, ao que parece, a inconstitucionalidade é múltipla.

Segundo o § 3º do artigo 105 da Constituição, haverá automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” nos recursos especiais oriundos de: “I – ações penais; II – ações de improbidade administrativa; III – ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos; IV – ações que possam gerar inelegibilidade; V – hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça; VI – outras hipóteses previstas em lei” (sic).

Desses critérios escolhidos pelo legislador para automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” nos recursos especiais, o que primeiro gera indagações é o critério do inciso III do § 3º do artigo 105 da Constituição: por que somente causas com valor que “ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos” são automaticamente relevantes juridicamente para o STJ? E as ações de estado, as ações de família, as ações meramente declaratórias, os mandados de segurança, Habeas Data e todas as outras ações de valores inestimáveis, não seriam muito mais social e juridicamente relevantes para o STJ e para a sociedade como um todo, do que uma simples ação de cobrança de mais de 500 salários mínimos? E duas causas absolutamente idênticas juridicamente, uma de 500 salários mínimos e outra de 501 salários mínimos? A primeira não teria relevância automática, mas a segunda sim? Por quê? Trata-se, à evidência, de critério aleatório e manifestamente incompatível com o caput do artigo 5° da Constituição, que exige tratamento isonômico de todos, inclusive no âmbito jurisdicional, “sem distinção de qualquer natureza“.

Portanto, por força do caput do artigo 5° da Constituição, não pode haver distinção de caráter meramente econômico para atribuição de relevância jurídica “das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” nos recursos especiais, mesmo porque o valor da causa não tem qualquer relação necessária, nem implicação obrigatória, com a relevância jurídica de cada causa. A relevância jurídica da causa do cidadão rico deve ser a mesma relevância da juridicamente idêntica causa do cidadão pobre, já que num “Tribunal da Cidadania” é de se esperar que, no mínimo, os cidadãos sejam tratados de forma isonômica sem distinção da quantidade de dinheiro envolvido.

A terceira questão que surge com a EC 125/2022 está no inciso V do § 3º do artigo 105 da Constituição, pelo qual há automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no recurso especial interposto se o “acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante o Superior Tribunal de Justiça” (sic). A esse respeito, o erro redacional é evidente, porque ao que parece, o legislador teria querido dizer “acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do Superior Tribunal de Justiça“. Fora esse erro de redação, os erros técnicos são manifestos.

A começar que nem a Constituição, nem lei alguma define o que seria “jurisprudência dominante“, o que certamente abre oportunidade para todos os tipos de subjetivismos e arbitrariedades contra os jurisdicionados.

O atual Código de Processo Civil perdeu a oportunidade para tanto, já que faz somente três referências absolutamente genéricas à “jurisprudência dominante“, quais sejam (1) no § 1º do artigo 926, ao prever que “os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante“”; (2) no § 3º do artigo 927, ao estabelecer que pode haver modulação dos efeitos da decisão, “Na[s] hipótese[s] de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos“; e (3) no inciso I do § 3° do artigo 1.035, pelo qual “Haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar acórdão que” (§ 3°), “I – contrarie súmula ou jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal“.

Não há, portanto, definição legal, muito menos constitucional, do que seria “jurisprudência dominante“, muito menos de jurisprudência dominante do STJ para fins do inciso V do § 3º do artigo 105 da Constituição.

Se não bastasse a ausência de definição legal e constitucional do que seria “jurisprudência dominante” do STJ, não há divulgação de dados estatísticos no STJ que revelem ao público qual é a “jurisprudência dominante” dele sobre cada questão jurídica por ele já julgada. Fica aqui uma singela sugestão à eminente ministra Maria Thereza de Assis Moura para que na gestão dela que se iniciará em breve na presidência do Superior Tribunal de Justiça, essa questão seja discutida para eventual implantação na página de pesquisa de jurisprudência do STJ de um campo específico de pesquisa que revele à sociedade a “jurisprudência dominante” dele sobre a questão jurídica pesquisada.

Por isso mesmo, na hipótese em que o recurso especial for interposto contra acórdão recorrido que contrariar qualquer acórdão do Superior Tribunal de Justiça sobre a mesma questão jurídica, ainda que seja somente um acórdão do STJ, nos termos do inciso V do § 3º do artigo 105 da Constituição deve também ter automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no referido recurso especial, sob pena de inversão da ordem constitucional e do absurdo resultado de se correr o risco de prevalecer um acórdão de tribunal local ou regional divergente de um acórdão do Superior Tribunal de Justiça, cuja nobre missão constitucional é, parafraseando o saudoso ministro Humberto Gomes de Barros, orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada […] Estou certo de que, em [não] acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la” (Corte Especial, AgRg nos EREsp n° 228.432/RS, DJ 18/3/2002).

De fato, ainda que tenha o STJ se manifestado uma única vez sobre determinada questão jurídica, vale dizer, num único precedente acórdão, isso já poderia ser chamado de “jurisprudência dominante” para fins do inciso V do § 3º do artigo 105 da Constituição, exatamente porque não há definição legal, nem constitucional, dessa locução, e não há outro acórdão do STJ em sentido contrário àquele que foi contrariado pelo acórdão recorrido proferido por tribunal local ou regional situado topologicamente no artigo 92 da Constituição abaixo do STJ e, por isso mesmo, o acórdão recorrido divergente do acórdão do STJ não pode, evidentemente, prevalecer, porque a competência constitucional de dar a última palavra sobre interpretação do direito federal é exclusivamente do STJ, pouco importando se essa palavra tenha sido dita uma única vez.

Portanto, nos termos do inciso V do § 3º do artigo 105 da Constituição a divergência com qualquer acórdão do próprio STJ deve ensejar a automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” no respectivo recurso especial, porque “tal divergência é, a rigor, a que mais revela a necessidade de conhecimento do especial, pois mostra que o STJ deve intervir no caso concreto para fazer prevalecer o seu já firmado entendimento sobre certo assunto” [1].

Por isso, melhor seria para a sociedade, ou, pelo menos, para os jurisdicionados, que o inciso V do § 3º do artigo 105 da Constituição (1) ou tivesse conceituado a locução “jurisprudência dominante” do STJ, (2) ou simplesmente tivesse escrito que há automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” “no recurso especial interposto contra acórdão recorrido que divergir de acórdão do Superior Tribunal de Justiça sobre a mesma questão jurídica“.

Esses são apenas os primeiros questionamentos e perplexidades decorrentes da atecnia da EC 125/2022.

A esperança de correção dessas e outras distorções criadas pela EC 125/2022 parece estar no inciso VI do § 3º do artigo 105 da Constituição Federal, ao prever que haverá automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” nos recursos especiais em “outras hipóteses previstas em lei“; ou seja, em lei específica a ser ainda editada para regulamentar outras hipóteses nas quais também deve haver a automática “relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas” nos recursos especiais.

Espera-se que na tramitação da lei prevista no inciso VI do § 3º do artigo 105 da Constituição haja um adequado debate técnico no Parlamento, com a necessária participação de especialistas e da Ordem dos Advogados do Brasil, que, ao que parece, não foram ouvidos, nem consultados, nem participaram da elaboração da EC 125/2022.

Quem pretende ser um país sério e ingressar na OCDE não pode, de forma irresponsável, jogar a sociedade como um todo à própria sorte em matéria jurisdicional, sem lhe dar qualquer critério objetivo definido em lei, fazendo com que se tenha que adivinhar qual é a “jurisprudência dominante” do órgão de cúpula do Poder Judiciário nacional em matéria de direito infraconstitucional, porque isso é falta de seriedade com a prestação jurisdicional e de compromisso com o jurisdicionado, é carimbar a bananice da República.

[1] Luiz Fernando Valladão Nogueira. Recurso especial. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 52.

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