A retroatividade do acordo de não persecução penal: uma luz no fim do túnel

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CONJUR / Por Tiago Bunning Mendes

Desde que a Lei 13.964/2019 entrou em vigor, o acordo de não persecução penal (ANPP), previsto no artigo 28-A do CPP, tornou-se um dos temas mais debatidos pela comunidade jurídica.

A maior controversa sobre o tema gira em torno da possibilidade de aplicação retroativa do dispositivo legal, mais especificadamente quanto ao limite temporal para realização do ANPP.

Considerando que a consequência do cumprimento do ANPP é a extinção da punibilidade (artigo 28-A, § 13º), não é errado dizer que se está diante de norma penal mista e que por isso deveria ser observado o artigo 5º, XL, da CF, permitindo a aplicação retroativa do ANPP aos processos em andamento. Essa foi a posição adotada pela doutrina majoritária [1], alguns inclusive defenderam a possibilidade de retroatividade até mesmo para os casos com sentença transitada em julgado [2], o que também não soa desarrazoado em observância ao artigo 2º, parágrafo único, do CP.

Contudo, na jurisprudência o tema não encontrou a mesma harmonia. No Superior Tribunal de Justiça, enquanto a 5ª Turma desde o início manteve a posição de que o ANPP seria um instituto pré-processual, primeiramente fixando como termo final o oferecimento da denúncia [3], e em um segundo momento o recebimento da denúncia [4], a 6ª Turma chegou a reconhecer a retroatividade do artigo 28-A para os processos sem trânsito em julgado, em dois casos de relatoria do Ministro Nefi Cordeiro [5], até que em 9 de fevereiro de 2021 acabou se filiando ao entendimento da 5ª Turma, unificando a posição no sentido de que somente seria possível a realização do ANPP antes do recebimento da denúncia [6].

No Supremo Tribunal Federal, a 1a Turma adotou a mesma posição do STJ, reconhecendo a aplicabilidade do ANPP somente até o recebimento da denúncia [7], por sua vez a 2ª Turma já reconheceu a possibilidade do ANPP em um caso em que o MPF requereu desclassificação da conduta de tráfico para tráfico privilegiado nas alegações finais [8].

O tema não encontra consenso dentro do próprio Ministério Público. O Enunciado nº 98 da 2ª Câmara de Coordenação Criminal autoriza o ANPP nos processos em andamento até o trânsito em julgado, apenas reconhecendo a preclusão nos casos em que a defesa, que antes tenha recusado o ANPP, demonstre o interesse no acordo após a sentença ou acórdão [9]. Por sua vez, no Supremo a PGR já apresentou as duas posições, há parecer favorável à aplicação do ANPP aos processos em andamento (HC 185.913/DF) [10] e outra manifestação que coloca como marco limitador o recebimento da denúncia (RHC 209.955/SC [11].

Por isso, o ministro Gilmar Mendes agiu acertadamente quando afetou a decisão sobre o tema ao Plenário do Supremo no HC 185.913/DF, ainda em 22/9/2020. O julgamento teve início no Plenário Virtual em 17/9/2021 e o ministro Gilmar Mendes já apresentou seu voto fixando a tese de que: “É cabível o acordo de não persecução penal em casos de processos em andamento (ainda não transitados em julgado) quando da entrada em vigência da Lei 13.964/2019, mesmo se ausente confissão do réu até aquele momento. Ao órgão acusatório cabe manifestar-se motivadamente sobre a viabilidade de proposta, conforme os requisitos previstos na legislação, passível de controle, nos termos do artigo 28-A, §14, do CPP”. Contudo, houve pedido de destaque do ministro Alexandre de Moraes em 20/9/2021, não permitindo que o julgamento fosse finalizado. O tema voltará a ser discutido pelo Plenário em 18 de maio deste ano.

Não podemos esquecer da lição de Juarez Cirino ao advertir que a “coerção processual é a própria realização da coação punitiva” [12]. Esse é o grande problema, pois enquanto não há resolução sobre o tema, acaba prevalecendo a posição adotada pelas 5ª e 6ª Turmas do STJ em consonância com a 1ª Turma do Supremo. Portanto, desde que entrou em vigor o artigo 28-A, em 23/1/2020, já foi recusado a milhares de acusados em processo criminais a possibilidade do ANPP. Nesses casos, o risco de um prejuízo irreparável é evidente. Afinal, se prevalecer o voto do ministro Gilmar Mendes pelo cabimento do ANPP até o trânsito em julgado, ou caso seja fixada outra tese com limite temporal (por exemplo, antes do término da instrução ou até a sentença), ficariam prejudicados todos os acusados que manifestaram o interesse ao ANPP, cujos processos já tenham ultrapassado o marco temporal para o oferecimento do acordo.

Novamente surgiriam discussões sobre a retroatividade do entendimento jurisprudencial e seriam impetrados diversas revisões criminais e Habeas Corpus sobre o tema, salvo se houvesse modulação dos efeitos da decisão proferida no HC 185.913/DF.

Por isso, há muito tempo afirmamos que a melhor estratégia de defesa [13], e ao mesmo tempo a conduta mais cuidadosa aos magistrados, garantindo a segurança jurídica e evitando tratamentos díspares, seria sobrestar o andamento processual dos processos em que forem cabíveis o ANPP e o acusado tenha manifestado interesse no acordo, até o julgamento do HC 185.913/DF. Foi justamente essa a providência adotada pelo ministro Ricardo Lewandowski no HC 211.360/SC ao conceder medida liminar para suspender a execução de pena e o prazo prescricional, em recente decisão proferida no último dia 20.

[1]  Neste sentido: LIMA, Renato Brasileiro. Manual de Processo Penal. 8ª Ed. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 279. LOPES JUNIOR, Aury. Direito processual penal. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. p. 318. DEZEM, Guilherme Madeira e SOUZA, Luciano Anderson de. Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 68. JUNQUEIRA, Gustavo et al. Lei anticrime comentada: artigo por artigo. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 175. CABRAL, Rodrigo Leite Ferreira. Manual do acordo de não persecução penal. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 213. Na companhia de Guilherme Lucchesi, também adotei esta posição em: MENDES, Tiago Bunning. LUCCHESI, Guilherme Brenner. Lei Anticrime. A (re) forma penal e a aproximação de um sistema acusatório? São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2020, p. 71.

[2] DE BEM, Leonardo; MARTINELLI, João Paulo. O limite temporal da retroatividade do acordo de não persecução penal. Acordo de não persecução penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020.

[3] Salvo melhor juízo, a decisão mais antiga encontrada no site do STJ foi proferida no: EDcl no AgRg no AgRg no AREsp 1635787/SP, relator ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 04/08/2020, DJe 13/08/2020.

[4] EDcl no AgRg nos EDcl no AREsp 1.681.153/SP, relator ministro Felix Fischer, Quinta Turma, j. 8.9.2020, DJe 14.9.2020

[5] “1. É reconsiderada a decisão inicial porque o cumprimento integral do acordo de não persecução penal gera a extinção da punibilidade (artigo 28-A, § 13, do CPP), de modo que como norma de natureza jurídica mista e mais benéfica ao réu, deve retroagir em seu benefício em processos não transitados em julgado (artigo 5º, XL, da CF). 2. Agravo regimental provido, determinando a baixa dos autos ao juízo de origem para que suspenda a ação penal e intime o Ministério Público acerca de eventual interesse na propositura de acordo de não persecução penal, nos termos do artigo 28-A do CPP (introduzido pelo Pacote Anticrime — Lei nº 13.964/2019). (AgRg no HC 575.395/RN, Rel. Min. Nefi Cordeiro, Sexta Turma, j. 08/09/2020)” No mesmo sentido: EDcl no AgRg no AREsp 1319986/PA, relator ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 23/02/2021, DJe 26/02/2021.

[6] Por ironia do destino, a mudança de entendimento da 6a Turma surgiu em 09/03/2021, data da última sessão antes da aposentadoria do ministro Nefi Cordeiro, no julgamento do AgRg no HC 628.647/SC, relator ministro NEFI CORDEIRO, Rel. p/ Acórdão ministra LAURITA VAZ, SEXTA TURMA, julgado em 09/03/2021, DJe 07/06/2021, após divergência da Ministra Laurita Vaz, acompanhada pelo ministros Rogério Schietti Cruz e Antônio Saldanha Palheiro, vencidos os ministros Nefi e Sebastião Reis Jr.

[7] HC 191.464 AgR/SC, relator ministro Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 11.11.2020, DJe 26.11.2020.

[8] HC 194.677/SP, relator ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, j. 11.5.2021, DJe 13.8.2021

[9] Enunciado nº 98. É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do artigo 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão. Alterado na 187ª Sessão de Coordenação, de 31/08/2020. (Disponível em: http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr2/enunciados)

[10] https://www.conjur.com.br/dl/mpf-retroatividade-anpp-nao-ocorre.pdf.

[11] http://www.mpf.mp.br/pgr/documentos/RHC20995521.pdf.

[12] SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal. Parte Geral. 7a Edição. Florianópolis: Empório do Direito, 2017, p. 54.

[13] Veja o vídeo publicado em 02/07/2021 em meu perfil no Instagram @tiabobunning (Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CQ11tzBhAZm/?utm_medium=copy_link).

 

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