A perigosa depressão da classe média, por Thales Guaracy (in Poder 360)

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Quando lhe perguntaram como se sentia por estar devendo R$ 1 bilhão na praça, tempos atrás, Eike Batista respondeu que estava com saudade “da vida da classe média”. Eu gostaria de saber quem mais da classe média está devendo R$ 1 bilhão. Com esforço máximo, tem gente devendo R$ 20.000 para o cartão de crédito ou no cheque especial. E já é o bastante para a classe média virar povão.

A classe média brasileira nunca passou por um processo de extinção como agora. A famosa “nova classe média” criada pelas políticas de renda do PT, e um esforço de qualificação por meio de faculdades particulares que fez a fortuna de alguns empreendedores do ramo, não passou de uma bolha.

Como todo artificialismo promovido pelo Estado, seu efeito acaba, deixando apenas contas a pagar. A onda de desemprego, mais o efeito da pandemia, jogou todo mundo de volta no subemprego, na informalidade ou coisa pior.

A classe média que já era classe média, formada pelo assalariado, o trabalhador mais qualificado, e o profissional liberal, não se encontra em melhor situação que o pessoal que teve um gostinho de algo bom e logo desceu novamente no abecedário social. Como ela não consegue ser povão, que entra para o crime, a igreja ou a milícia, nem tem cacife ou embocadura para se aventurar no empresariado, encontra-se sem salvação.

A classe média sempre se caracterizou por viver do trabalho formal, aquele que paga salário todo mês, 13º, férias remuneradas. Algo que está indo rapidamente para o brejo no neocapitalismo digital, em que você tem de dar o sangue por empregos cada vez mais raros ou passa para o Grande Exército da informalidade, num grau maior ou menor, sempre ilegal.

E daí? –pergunta você. Daí que a classe média costumava ser o grande esteio de tudo: do mercado consumidor (por comprar os produtos), dos investimentos (colocando aquele dinheirinho que constituía a poupança de todo o país), e dos impostos (que movem os serviços públicos e permitem, inclusive, os subsídios, tanto dos programas de assistência aos mais pobres quanto do fomento ao empresariado).

Sem emprego, não há classe média, e aquelas empresas que acabaram cortando sobretudo os cargos médios, em nome do desempenho, ou substituindo gente por tecnologia, podem ter otimizado suas operações, mas acabaram contribuindo para destruir o mercado, para não dizer a sociedade.

O que adianta ser ótimo se não há ninguém para comprar? Como reclamar da falta de serviço público, se eliminamos os grandes pagadores de impostos? Como podemos viver num mundo onde há somente o rico, e agora na verdade o superrico, que não paga imposto porque esconde o dinheiro em criptocontas, e uma multidão de subempregados e miseráveis?

Há ainda um outro fator muito importante na extinção progressiva da classe média –ainda mais por ser invisível. É nela que se cultivam valores tradicionais, justamente por sua posição na sociedade, de defesa de uma certa moral conservadora, essencial para a agregação de um país, cujo ponto central é a defesa do esforço honesto para a ascensão social.

É a classe média que mais valoriza a educação, quem defende o fim da corrupção e os princípios da liberdade e da igualdade que caracterizam os regimes democráticos.

Enquanto o Brasil elimina a classe média, outros países lutam para que ela prevaleça. Pois defendem acima de tudo a igualdade entre os cidadãos. Igualdade de oportunidades, que se oferece pela educação. Igualdade de direitos, num país cujo sistema jurídico e penal é um modelo de arbitrariedade. E igualdade de qualidade de vida, com emprego, serviços públicos decentes, segurança, saúde, habitação.

Somente em países onde não há um abismo tão grande entre o rico e pobre há menos violência e mais estabilidade política e social. No Brasil, porém, a opressão da classe média urbana é hoje mais um fator de instabilidade –e dos mais importantes.

Foi ela quem foi às ruas para protestar nas jornadas contra Dilma Rousseff, por ver o dinheiro dos impostos beneficiar somente outros, e muito pouco aqueles que os pagam. E ela está esperando somente aparecer a vacina, que o presidente Jair Bolsonaro tenta a todo custo retardar, para recomeçar seus panelaços.

A extinção dos direitos do trabalho e o achatamento da renda são duas das maiores cabeças da Hidra de Lerna que assombra o Brasil. O monstro mitológico tinha ainda uma das cabeças imortal, e esta é o Estado brasileiro, que tem servido historicamente para defender ganhos e privilégios de quem dele se apropria e tem sido responsável por recordes de concentração de renda e todas as outras distorções disso derivadas.

Somente a igualdade estabelecida pela legítima democracia tem condições de desafiar esse monstro e dar uma vida melhor a todos neste país. Como no mito, é preciso um esforço hercúleo para fazer vencer o monstro, contrariando interesses poderosos, mas não há outro caminho. Até mesmo para os ricos, que, para continuarem ricos, precisam ter ainda algum país.

É preciso, portanto, perseverar no ideal de um país mais igual, com uma vida de qualidade para todos, revertendo um nivelamento por baixo que pode nos levar aos caos, e para o qual estamos rumando, a passos rápidos.

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