Desafios e estratégias das profissões jurídicas no pós-Covid

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CONJUR – Por Vladimir Passos de Freitas /// Desembargador Federal

Já se tornou claro aos olhos de todos que o Brasil não será o mesmo quando for superada a pandemia da Covid-19. Na verdade, além de ser desconhecida a data do término e também se ele ocorrerá totalmente um dia, o fato é que as consequências deixarão suas marcas na vida de todos.

Não é preciso ter as habilidades de Nostradamus para prever o aumento de desempregados, de vulneráveis, a extinção de algumas profissões e o surgimento de outras, de maior socorro do estado às pessoas físicas e jurídicas, criando uma maior dependência do poder público, a alteração das regras de convivência e formas de trabalhar.

Mas fiquemos no nosso mundo particular, o do Direito, com suas múltiplas peculiaridades. Fechemos os olhos e tentemos vislumbrar como serão as profissões jurídicas em futuro próximo.

Iniciemos pelos órgãos da Segurança Pública, porque afinal, na área criminal, são os que primeiro tomam conhecimento dos fatos. A Polícia Militar sofrerá de forma mais direta as transformações, uma vez que atua nas ruas. A crise econômica ocasionará o surgimento de mais zonas conflagradas e de revolta genérica de muitas pessoas. A Polícia Civil e a Federal terão o dever de investigar milhares de infrações relacionadas com fraudes no recebimento de verbas de saúde e benefícios assistenciais. Estados economicamente debilitados não disponibilizarão verbas para aquisição de bens que dão estrutura à ação preventiva ou às investigações.

Na advocacia, as transformações vêm sendo profundas, entre elas sobressaindo-se o uso da eletrônica. O grande ministro Pedro Lessa, do STF, a quem o professor Roberto Rosas chama de Marshall brasileiro, ficaria muito assustado se voltasse à Terra e visse petições com quadros, gráficos e fotos tiradas por satélites que atestam fatos passados há anos.

Não exclusivamente por causa da pandemia, mas estimulado por ela, jovens profissionais trabalharão em casa, valendo-se de aluguel de salas montadas para atendimentos especiais, cujo tamanho e sofisticação variam de acordo com as posses do interessado. Economizar o aluguel do próprio escritório, IPTU, mobiliário, luz, estagiário e tudo o mais, será a regra e não a exceção.

Serviço não faltará a quem tiver disposição e perseverança. Por exemplo, no atual momento, milhares de ações relacionadas com o Corona vírus estão sendo propostas nas Varas Judiciais. São discussões sem fim, como as relações de trabalho, o alcance do plano de saúde e a responsabilidade civil pela transmissão da gripe. Mas os rendimentos da maioria serão mais pela quantidade de clientes do que por boas causas individuais.

Uma exigência incômoda será a necessidade de ser mais flexível às demandas. Outrora, o advogado marcava uma reunião no seu escritório e nela ouvia e passava ao cliente todas as informações. Mas, no “novo normal”, ele terá que ser paciente e responder mensagens por WhatsApp, que bombardeiam seu celular permanentemente, e habituar-se a reuniões fora do horário ou mesmo em fim-de-semana.

Sensibilidade para saber “para onde o vento sopra” e ocupar o espaço em uma área inexplorada. Mas tem que ser rápido, porque em seis meses o vazio poderá estar ocupado por outros. A concorrência é grande. Por exemplo, neste momento o Direito Ambiental viu-se totalmente renovado, por força da pressão mundial e dos empresários brasileiros a favor da proteção da Amazônia. É óbvio que grandes empresas terão programa de compliance e precisarão ser assistidas por advogados especializados.

Vejamos agora os defensores públicos, que são os advogados dos carentes. Possuem a segurança de vencimentos pagos regularmente, porém enfrentarão o problema do aumento da demanda. A previsível elevação da pobreza fará com que sejam mais e mais procurados.

A criação de novos métodos de trabalho, com o melhor aproveitamento de pessoas e espaços, será essencial. Afinal, dificilmente os novos desafios serão resolvidos com a criação de mais cargos, uma vez que o poder público tem e terá mais carências econômicas.

Por outro lado, aos defensores públicos será necessário dar-se apoio psicológico para que se mantenham mentalmente sadios em tais condições. Poucos sabem o que é defender aqueles que não têm mais a quem recorrer, que mal sabem explicar o seu caso e que normalmente não possuem documentos que provem suas alegações. Atendê-los é uma missão importantíssima, mas que desgasta. Daí a necessidade de boa orientação, principalmente para os jovens concursados que só conheciam a pobreza através de cenas da televisão.

A advocacia pública, seja federal, estadual ou municipal, atravessa um bom momento. As carreiras estão bem estruturadas, muitos recebem no teto do STF, já que lhes foi dado o direito de receber honorários de sucumbência, e no DF e em alguns estados se permite que advoguem em caráter particular. Por tais razões, os procuradores, na vida pessoal, serão menos afetados.

No entanto, nestas carreiras, mais no âmbito da União, menos nos municípios, haverá uma tendência de distanciamento entre o procurador e a procuradoria. A massificação dos processos, antes mesmo da pandemia, já originou práticas de distanciamento, como a de procuradores federais que defendem o INSS não comparecerem a audiências. Agora, com o trabalho em casa, que tende a se perpetuar, muitos se tornarão burocratas que se limitam a entregar sua cota de trabalho nos limites estabelecidos, passando a dedicar seu tempo a outros afazeres. Por exemplo, criar ou lecionar em cursos preparatórios.

O Ministério Público também não ficará alheio aos novos tempos. O aumento da pobreza originará maior número de infrações penais, principalmente no âmbito estadual. Agravará um fenômeno que vem se tornando comum, que é o da invasão, por pessoas carentes, de áreas de preservação ambiental. Por outro lado, o trabalho quase que exclusivo em casa, principalmente dos que atuam junto a Tribunais (Procuradores de Justiça, do Trabalho, Militar, Regionais da República ou Sub-Procuradores Gerais da República), levará muitos à procura de outros interesses. Uns na área jurídica (v.g., vida acadêmica) outros fora dela (v.g., explorar propriedade rural).

Outra possibilidade é a de surgirem promotores de Justiça reivindicando o direito de morar a centenas de quilômetros. Imagine-se um dedicado estudante paranaense que passe no concurso do MP da Paraíba. Assumindo uma função que lhe permita trabalhar em casa, ele assim age, mas só que na sua casa de Curitiba e não em uma localizada em João Pessoa. E a seu favor dirá que a produtividade é excepcional, o que até poderá provar por estatísticas. O Corregedor enfrentará a situação? Ou agirá com uma suposta bondade, que no fundo não passa de covarde acomodação?

Finalmente, o Poder Judiciário e a sua magistratura, cuja atividade é, de todas, a mais fiscalizada por órgãos de controle, pela mídia e pela sociedade.

Não é difícil prever que os orçamentos encolherão. Isto já é realidade e tende a agravar-se. Assim, do ponto de vista econômico,  é previsível que: a) nos Tribunais Superiores, em Brasília, seja reduzido o número de terceirizados (p. ex., motoristas), transformados cargos que se revelaram inúteis em julgamentos virtuais (v.g., os “capinhas”, cuja missão é colocar a toga dos ministros nas sessões); b) nos Tribunais de Justiça seja reduzido o número de automóveis de representação de desembargadores, os quais ficarão restritos aos cargos de direção (v.g., presidente); c) nas comarcas ou subseções judiciárias, unam-se as secretarias das varas, com menor número de servidores e racionalização dos serviços.

A evolução do julgamento virtual, a necessidade de maior eficiência e a carência de verbas, estimularão soluções outrora impensáveis, como Juízos de Direito terem competência além da comarca. Isto já ocorre na Justiça Federal da 4ª Região, onde um juiz de uma subseção julga processos de outras subseções, através de competência que lhe é atribuída através de ato administrativo. O princípio do juiz natural ficará restrito a casos de flagrante desvio de poder.

Ainda, as funções de desembargador, nos Tribunais de médio e grande porte (de 30 para cima), passarão a ser mais burocratizadas. Com efeito, a gestão ficará nas mãos de poucos e estes, com certeza, terão participação ativa e presencial. Mas os demais, que apenas julgam em sessões virtuais, tenderão a afastar-se do Tribunal, viver em locais aprazíveis e bem estruturados (v.g., loteamentos bem equipados em áreas próximas das capitais), cultivando amizades locais e desinteressando-se pela Corte.

Na primeira instância não será grande a diferença. A exigência da Lei Orgânica da Magistratura, de que o juiz resida na comarca, será implicitamente revogada pela Lex Coronavirus.

E assim vamos. Melhor? Pior? Pouco importa a opinião, trata-se de fato inexorável. De resto, cabe aqui indagar: as instituições estão se preparando, como lhes cabe, para o “novo normal”?

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